terça-feira, 16 de outubro de 2012

Quem é o sujeito da ciência?

Com o movimento que se delineava ao final da Idade Média da construção de uma epistemologia que respondesse às transformações teóricas ocorridas principalmente na escolástica que deslocaram os conceitos de “Deus” e “alma” para outro sentido, surge a necessidade de um novo fundamento que respondesse a um conhecimento racional que havia se dissociado (não completamente) da fé. O pensamento do homem não mais dependia de uma “revelação” para a investigação sobre o mundo e os entes, então a noção de alma ganha uma nova conotação, como princípio unificador subjacente aos objetos através da intuição. Esta nova “condição” da alma (dissociada do corpo, colocada como intelecto finito humano) a faz ser pensada como subjectum, no sentido de uma substância (criada), na qual se deveriam adequar todo o conhecimento e produção humanos. Mas esta identidade essencial entre subjectum e alma fez surgir a ideia de subjectum enquanto uma instância, o que posteriormente levará Descartes a formular sua noção de ego, de sujeito (ou seja, o outro sentido que o subjectum adquiriu e se perpetuou até hoje no pensamento científico).

Heidegger (2009) diz, nos Seminários de Zollikon, que neste período deu-se uma inversão das noções de subjectum e objectum que haviam sido traduzidas do grego para o latim no começo do período medieval. E isso tem uma importância fundamental para se compreender posteriormente a elaboração da ideia de um “psiquismo” científico, objetificado, partindo da compreensão de subjectum como um ego substancializado como se dará em Descartes. Temos então um subjectum substancializado, objetificado como objectum, na forma de sujeito (psicofísico), e um objectum com sua verdade transcendentalizada equiparada ao subjectum, sustentada pelo absoluto (Deus) via adequação. Assim o sujeito emerge completamente dissociado do objeto, e o homem vê sua relação com a verdade do ser balançar, ou seja, sua própria relação com o mundo e com os outros é ameaçada por ser "artificializada".

Pra quem gosta de arrotar ciência como verdade absoluta...

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Por que fazer o curso de Psicologia?



Acredito que qualquer estudante de Psicologia que tenha verdadeiramente se dedicado a compreendê-la de modo mais abrangente, desde as suas raízes até suas atuais distorções, chegue ao momento de perguntar-se "afinal, por que eu fiz Psicologia?".

Podemos pensar em dois sentidos imediatos para esta pergunta: o "motivo" pelo qual fiz o curso, no sentido das expectativas que se tem (isto já está dado desde a inscrição no vestibular, não constituindo-se assim questão que careça de maiores desmembramentos); ou "para que" me serviu o curso de Psicologia. Quanto a esta questão, minha resposta hoje, depois de ter passado pela quase totalidade do curso, é imediata e bem diferente do "motivo" pelo qual fiz o curso: permitiu que eu me familiarizasse com certa linguagem que será necessária para que eu consiga um emprego na área e para ter a oportunidade de trabalhar com a clínica em um estágio supervisionado e "gratuito" (ignoro ao utilizar este termo de certa forma aqui a questão dos impostos que todos os contribuintes pagam à União e que mantem as Universidades para me fazer compreender no que interessa neste texto).

Porém a dignidade da segunda questão exige que eu vá além de uma resposta curta, e reside nas carências que, além das que qualquer outro curso possa apresentar em uma Universidade pública, são específicas para a nossa área.

A Psicologia enfrenta sérios problemas de fundamentos desde sua "fundação" como ciência, quando Wundt abriu seu laboratório em Leipzig. A Psicologia então torna-se ciência a partir do momento em que torna-se "experimental". Sobre isso dirá Husserl:

A psicologia exata não chega a ter consciência de aqui haver um grande defeito no seu procedimento, tanto menos quanto está certo que ela zela contra todos os métodos da auto-observação, e que se esforça energicamente por vencer, pelo método experimental, os defeitos deste mesmo método; mas isto significa vencer um método que aqui, como se pode provar, não é o indicado (HUSSERL, 1965, p.21).
 
É óbvio e evidente que tudo que alunos de Psicologia, em sua maioria, menos se preocupam é com isso. Dane-se de onde veio! O importante para o aluno de Psicologia é a "prática". Sobre isso:
 
Para primeiro podermos experimentar, na sua pureza, a cita essência do pensar, o que significa ao mesmo tempo, realiza-la, devemos libertarmo-nos da interpretação técnica do pensar, cujos primórdios recuam até Platão e Aristóteles. O próprio pensar é tido ali como teknê, o processo da reflexão no serviço do fazer e do operar. A reflexão, já aqui, é vista sob o ponto de vista da práxis e da poiésis. Por isso, o pensamento, tomado em si, não é “prático”. A caracterização do pensar como theoría e a determinação do conhecer como postura “teórica” já ocorrem no seio da interpretação “técnica” do pensar. É uma tentativa de reação, visando também salvar o pensar, dando-lhe ainda uma autonomia em face do agir e do operar (HEIDEGGER, 2008, p.9).
 
Claro que, estando mergulhados sob a égide do discurso de "abordagens" marcadamente presente em nossa área, diria que a maioria das pessoas da área recorrerá ao argumento de que se trata de "uma abordagem que não é a sua" para justificar sua ausência de reflexão sobre tais questões, e, assim seguir feliz em sua vida sem precisar se preocupar com os problemas da Psicologia, das Ciências, ou da Psicologia enquanto Ciência. O que é uma "resposta" compreensível devido a toda uma formação, não só no curso de Psicologia, como desde o ensino básico, como o próprio Heidegger coloca que é algo profundamente enraizado desde os gregos, e que nem atinge só a Psicologia.

Por que então trazer esta reflexão à questão sobre o curso de Psicologia? Justamente porque se trata de uma área humana. A Psicologia visa a tratar justamente daquilo que nenhuma ciência pode tratar. E mais: ao tentar se colocar como ciência se distancia ainda mais daquilo que deveria ser sua própria característica mais particular, e de seu "objeto" por excelência. Apesar de a própria ideia de uma "aplicação" já conflitue com o que Heidegger coloca, é necessário um momento para a reflexão, mesmo que seja para a escolha de uma "abordagem". E essa reflexão não pode passar batido pela questão sobre o que aquela teoria representa da realidade, do que eu penso sobre o homem, e quais são seus limites.

Acredito que boa parte desse "encobrimento" sobre essas questões tão importantes, deve-se, num nível mais imediato do que o do modelo de pensamento que influencia as políticas educacionais, à estrutura dos cursos de Psicologia. São cursos onde as disciplinas "teóricas" estão dando lugar às disciplinas "práticas", com intuito totalmente mercadológico, em uma área onde as pessoas não podem se dar ao luxo de pensar somente por esta via, visto que algumas condições próprias do trabalho psicológico exigem que se siga um "ritmo" que não é o ritmo das questões de mercado. A máxima "tempo é dinheiro" aqui só faz sentido se se considera que o tempo e o dinheiro estão colocados como fatores que auxiliam no tratamento, e isto só é possível se se tem em mente que o tempo é sempre "tempo para", é de cada um, é do sujeito.

Existe um movimento de crescimento do chamado "terceiro setor" no qual a Psicologia está se valendo para fincar-se em "áreas de atuação" nunca dante imaginadas e que não se sabe até onde vai sua efetividade. Guy Debord diz:
 
Com a automação, que é ao mesmo tempo o setor mais avançado da indústria moderna e o modelo que resume perfeitamente sua prática, é preciso que o mundo da mercadoria supere esta contradição: a instrumentação técnica que suprime objetivamente o trabalho deve, ao mesmo tempo, conservar o trabalho como mercadoria e como único lugar de origem da mercadoria. Para que a automação, ou qualquer outra forma menos extrema de crescimento da produtividade do trabalho, não diminua o tempo de trabalho social necessário na escala da sociedade, é necessário criar novos empregos. O setor terciário, de serviços, é a imensa extensão das linhas do exército que distribui e promove as mercadorias atuais; o imperativo de organização desse trabalho de suporte, com a mobilização dessas forças supletivas, decorre da própria artificialidade das necessidades relacionadas a tais mercadorias. (DEBORD, 1997, p.32).
 
Até que ponto isso está relacionado com a Psicologia só se saberá no próprio movimento das coisas, nos modos de como se dará esta formação futuramente. E parece que ela não caminha bem. Porque até agora as coisas funcionam de modo a projetar os graduandos como se fossem áreas que já estão bem implantadas, com recursos teóricos e pesquisas próprias, direcionando-os somente para o trabalho "braçal", onde não será necessário refletir sobre as próprias bases daquilo que suporta aquela prática ali, que foi transportada de outro lugar ou outra aplicação. Como não há firmeza na formação da base teórica das chamadas "abordagens", não há a devida visão crítica sobre essa transposição de um modelo prático para outro. O que redunda no fato de que se tenta negar de que haja a transposição da clínica para outras áreas, que supostamente tem seu "corpo teórico próprio" (como já cansei de ouvir), e acaba não se estudando direito nem uma coisa nem outra (nem a transposição de um modelo que não está bem sedimentado, nem a possibilidade de incorporação de um referencial outro porque ainda carece de sustentação.

As grades curriculares se modelam de acordo com isso, e se encaminham para um enxugamento teórico e consequente eliminação da necessidade de revisitar questões fundamentais que orientarão o profissional em qualquer área. Particularmente já acho que o curso de Psicologia é, em boa parte das disciplinas (senão a maioria), mera leitura de material de formação técnica/biomédica ou de pesquisa de realidades sociais outras que suscitam discussões pobres, não só pela evidente alienação, mas também porque temos a formação básica, bem como o mecanismo de seleção para o ensino superior (que perdeu seu caráter de "superior", para virar garantia de emprego) muito fracos; além de haver direcionamento irrefletido para áreas de trabalho que precisam garantir nicho. A falácia de que a Psicologia procura uma identidade unificada é facilmente desmascarada frente a tanta fragmentação.

Além disso, as disciplinas sobre os fundamentos e a história da Psicologia, e até mesmo ética, são ministradas por Psicólogos que, por já estarem vindo de um modelo que se reproduz, de uma fraca leitura filosófica, de uma formação que não priorizou uma base teórica sólida, fazem as disciplinas parecerem algo que a gente tem que "passar o mais rápido possível" para poder começar a estudar a "Psicologia de verdade".

Vale à pena ressaltar que existem profissionais dedicados e que levam o que fazem com seriedade, mesmo que estando submetidos ao modelo de pensamento científico (afinal, é necessário existir um contraponto). Acho que o mais importante é isso: responsabilidade. Com essa palavra mesmo que o referencial teórico não seja lá o ideal, algum trabalho acontece. E vejo profissionais que trabalham com um nível de comprometimento invejável e louvável, o que ainda me dá a sensação de que o curso de Psicologia ainda possa ser uma boa opção apesar de tudo.

Voltando à questão principal, vale à pena fazer Psicologia se você estiver muito disposto a lidar com todos esses problemas, se tiver simpatia pelo discurso científico, ou se achar realmente que não tem como ler livros sobre desenvolvimento humano, neurociências, teorias cognitivas, comportamentais ou filosóficas fazendo outro curso ou outra coisa da vida. Ou ainda se quiser muito trabalhar com a clínica (excetuando-se a Psicanálise, que tem uma formação específica fora da academia e não exige graduação em Psicologia), ou com testes psicológicos. No mais, aconselho a fazer outro curso que dê dinheiro mais rápido!

sexta-feira, 30 de março de 2012

Significando.

Apesar da ficção científica, acho legal isso de uma "mensagem que não pode ser escutada". Afinal, tem algo que escapa à ordem das palavras. Nossa "evolução" tecnológica, por mais "perfeita" que seja, não nos dará todas as respostas, e, inclusive tem como possibilidade trazer consigo nossa própria destruição nesta busca paranóica do conhecimento achando que alguém o tem, pois essa promessa de resposta e de plenitude nos é oferecida e imposta, o que acaba levando muita gente, inclusive, a uma série de transtornos e compulsões que podemos ver hoje em dia.
Na música, esse exemplo de uma mensagem chegar para seres que já "tratamos de extinguir", ou seja, dessa impossibilidade de a "mensagem" se fazer "representar" pra alguém, de ser "escutada", pode ser comparado ao nosso funcionamento psíquico, para fins didáticos: quando achamos que encontramos a "resposta", ela já é outra coisa que não está ali como possibilidade, que vivenciamos conscientemente como "perda", então passamos a buscá-la de novo, e de novo (uma vez que não nos é possível viajar no tempo também!). Mas diferentemente, pra psicanálise, na verdade, não há "mensagem", nem objeto, há somente a falta nesse lugar daquilo que buscamos, ou seja, as baleias que poderiam captar e responder a mensagem, no caso, podem ser consideradas como algo que poderíamos utilizar para tentar colocar no lugar da falta.
"We shape life, we travel space, but we don't know the words to the songs of the ocean."

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Questões acerca do Ato Médico


Eu confesso que li pouca coisa de oficial a respeito disso, mas tenho visto muitas publicações pela internet visando a discutir a questão. Ainda não pensei direito, e nem sei se tenho conhecimento suficiente para chegar a uma conclusão sobre o tema, mas acho estranho a quantidade de profissões da área da saúde que lidam com a fisiologia. A minha questão é: o que exatamente estas outras profissões fazem que o médico não tenha como opinar?

No caso da Psicologia, ou até mesmo da terapia ocupacional, fica bem claro pra mim porque lida com questões que não estão no âmbito da fisiologia, mas e no caso das outras? Eu estranho dar esse poder todo aos médicos, mas não me sai da cabeça uma dúvida quanto a todas estas outras áreas: elas não teriam surgido justamente por uma questão de nicho de mercado?

O que eu quero dizer é que na Psicologia temos o exemplo da Psicopedagogia, que surgiu diante de uma demanda que a Psicologia Escolar não acolheu (talvez até tenha surgido assim a TO também). Me pergunto então onde estas outras áreas da saúde, que não a psicologia (ou talvez a TO), diferem essencialmente em relação ao saber médico. Onde diferem essencialmente seus objetos de estudo, seus âmbitos temáticos de investigação?

Poder-se-á objetar que o saber médico não é o mesmo do médico veterinário apesar de lidarem com a fisiologia, mas além da diferença essencial entre animais e homens, acredito que os médicos não teriam tanta dificuldade em aprender sobre fisiologia animal e poder opinar rapidamente sobre alguma questão.

A enfermagem nunca reclamou da hierarquia que sempre existiu entre médicos e enfermeiros. Até onde eu sei sempre foram lugares muito bem demarcados. Enfim, eu sei que muita gente vai repudiar o que eu escrevi, mas não posso deixar de expor essas questões que acho que devem ser colocadas também, e que as pessoas querendo manter sua clientela talvez não devam querer pensar tanto. Posso também ser acusado de estar sendo bairrista em relação á Psicologia, mas basta ler qualquer livro introdutório sobre o assunto para saber que não se trata de soma, mas sim de psique.

Assumo que me falta um conhecimento sólido a respeito dos objetos de estudo e do surgimento dessas ciências. Mas como acho que já disse apenas quis colocar a questão...

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Deus é neurótico: imagem e semelhança dos homens.


Sem querer entrar em detalhes quanto à forma como as religiões podem ter se estabelecido, desta ou daquela maneira, a afirmação do título pode ser confirmada quando se pensa que Deus nos deu o livre-arbítrio para escolhermos amá-lo. Ora, se ele quisesse realmente que o amássemos, não teria nos dado o livre-arbítrio. Esta é a NOSSA forma de construir um deus, partindo do nosso modo de se sentir em relação ao mundo e às pessoas.

Pensemos na ideia de um ser superior, sem começo nem fim, todo-poderoso, totalmente bom (o que conflitua com a ideia de todo-poderoso), que ama seus filhos e quer ser amado por eles também. Se ele realmente "desejasse" isso, e não somente quisesse, nos teria feito com a única opção de amá-lo.

Parece que Deus precisa que lhe demos a falta. Bem aí surge um conflito: Deus não pode ser faltoso. Então por que precisamos amar a Deus ("sobre todas as coisas")? Por que ele quer o nosso amor para nos congratular com um lote no cantinho do céu?
O Deus que criamos é neurótico! Nós o fizemos faltoso e sintomático. Ele ao mesmo tempo que precisa que o amemos, não nos fez assim, porque é sintoma aquilo que o impede de chegar ao seu desejo. Ele precisa ficar no imaginário, esperando que o escolhamos. Ele precisa não saber, ele precisa do não-saber, da falta. Parece que ele sabe dos possíveis efeitos de uma satisfação total.

Seria muito fácil para ele nos fazer amá-lo ao nos criar, mas ele não se sentiria amado "de verdade". E este é outro ponto onde colocamos algo nosso nele, pois nós nos sentiríamos mal sabendo que temos o poder de fazer alguém nos amar. Isto pode ser percebido, por exemplo, em relacionamentos onde aquele que gosta "demais" tem que ficar medindo suas atitudes para não assustar o outro, justamente porque esse outro, sabendo do poder que tem para despertar esse grande amor, pode perder o interesse. Há que ter sempre uma dúvida para o neurótico. Ele quer ter notícia, mas não quer esse saber.

Existem outros vários pontos em que a questão pode ser explorada, e se eu não estivesse tão enferrujado nas leituras freudianas de Moisés e o Monoteísmo, ou Totem e Tabu, talvez elaborasse um texto mais contundente. Enfim, a intenção aqui, como no blog de modo geral, é simplesmente rascunhar ideias. Então é isso. Fica a dica dessas leituras (e do Mal-estar na Civilização), para aqueles que se interessem pela visão psicanalítica do social.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Liberdade, ética e controle na Terapia Comportamental.


Liberdade e controle no Behaviorismo Radical


O pensamento behaviorista de B.F. Skinner surge em meio a um período marcado pela desconfiança na humanidade devido às Grandes Guerras. Nesta época, onde começam a surgir movimentos que atuam como tentativa de resgatar este homem que está desacreditado, os valores essenciais do homem e da sociedade estão sendo constantemente repensados, dentre eles principalmente a noção de liberdade.

O exemplo das Grandes Guerras pode ser considerado como algo que deixa marcadamente claras na história da humanidade as relações de dependência entre o homem e o ambiente que o controla, na medida em que numa situação limite como esta, ficam explícitas as mais diversas formas de controle principalmente através da violência. Trata-se de um evento que ilustra bem o que diz Castanheira (2007):

A história da humanidade mostra como ela foi construída pelo uso de poder e do controle, com os povos mais poderosos utilizando reforçadores e punidores dos mais diversos tipos para dominar, abusar e controlar o comportamento dos indivíduos, grupos e povos menos poderosos e destituídos. (CASTANHEIRA, 2007, p. 09).

Esta visão é uma visão skineriana que, tendo surgido num momento de reconstrução dos valores humanos, aliado a um histórico de recusa a toda idéia de controle culturalmente construída ao longo da história da humanidade, gerou os mais diversos tipos de reações.

A liberdade, que sempre foi tema de reflexão do homem, até a época de Skinner, era pensada ainda como total ausência de controle, como um agir como se quer. Ele, porém, desenvolve um modelo teórico que coloca o comportamento humano como sempre mantido por variáveis de controle, que causam e incidem sobre o comportamento, alterando ou mantendo sua frequência.

O que Skinner elabora é uma alteração do modelo de Pavlov de comportamento reflexo (S-R) para considerar também as variações e a seleção destes comportamentos através de suas consequências, inspirando-se no modelo darwiniano de seleção natural e nos experimentos de Thorndike sobre a relação temporal entre as respostas e suas consequências. (Laurenti, 2009).

Na verdade, esse modelo explica a origem e evolução do comportamento seguindo uma estrutura chamada tríplice contingência, que especifica um conjunto de condições antecedentes, respostas e consequências. Nessa perspectiva, um novo comportamento é gerado quando, diante de condições específicas, respostas (variações) são selecionadas pelas consequências que produzem. (LAURENTI, 2009, p. 252).

A partir desta nova concepção de comportamento, Skinner pode pensar mais amplamente a complexidade das interações humanas com o ambiente.

O ambiente não apenas cutuca ou sacode, ele seleciona. Sua função é semelhante à da seleção natural, e foi deixado de lado pela mesma razão. Agora é evidente que devemos considerar o que o ambiente faz a um organismo não somente antes, mas depois de sua resposta. O comportamento é modelado e mantido por suas consequências. Uma vez que esse fato seja reconhecido, podemos formular a interação entre organismo e ambiente de forma bem mais ampla (SKINNER apud LAURENTI, 2009, p. 256).

Tendo elaborado o modelo de seleção por consequências, que além de levar em consideração as consequências dos comportamentos, considera também a relação temporal entre os eventos, Skinner formula uma visão do desenvolvimento humano dividida em três esferas: a filogênese, a ontogênese e a cultura.

A filogênese está relacionada com a herança genética (características biológicas), a ontogênese à história de vida pessoal de cada um, e a cultura, o contexto social em que o sujeito está inserido. Estas três esferas em interação constituem o repertório comportamental do sujeito.

Considerando isto, fica claro o que já foi dito a respeito do homem: ele está submetido a inúmeras variáveis de controle. Como consequência disso a teoria skineriana é alvo de muitas críticas quanto à sua visão de homem, porém, na maioria das vezes não fica claro se esta noção de controle foi devidamente compreendida.

O que Skinner quer dizer com controle não é uma privação, uma repressão, mas sim diz respeito à “relação funcional entre eventos naturais, entre os quais se inclui o comportamento humano.” (Laurenti, 2009), ou seja, trata-se de um conceito científico.

Dizer que o comportamento é controlado significa, simplesmente, que o comportamento está em relação de dependência com outros eventos. Dito de outro modo, Skinner emprega o termo para chamar a atenção para o fato de que o comportamento tem “causas”, e que uma ciência do comportamento deve identificá-las e descrevê-las. Todavia, vale lembrar que dizer que o comportamento é controlado não implica a tese de que o comportamento é determinado. (LAURENTI, 2009, p. 262).

Logo, não há uma oposição necessária entre controle e liberdade. O problema é que as pessoas não identificam nenhuma causa para o comportamento operante sob reforçamento positivo, o que lhes dá a falsa sensação de uma conduta que partiu de “dentro”, da vontade (Brandenburg & Weber, 2005). Normalmente elas não se dão conta de que pode haver um controle aversivo por estarem sob reforçamento positivo imediato, alimentando concepções de liberdade errôneas, generalizando que toda idéia controle significa repressão. Isto não é verdade tendo em vista o que já foi abordado até aqui. “Contra essa generalização, Skinner afirma que a luta pela liberdade não seria uma luta pela liberdade do controle, mas de certos tipos de controle.” (Laurenti, 2009, p. 264)

Dessa forma, para o behaviorismo radical, liberdade não é a simples ausência de punição, ou seja, fazer o que se quer sem ter que sofrer consequências desagradáveis, mas a possibilidade de discriminação das variáveis de controle que influenciam o comportamento humano. (Brandenburg & Weber, 2005).


Ética e liberdade na Terapia Comportamental


A Terapia Comportamental é um modelo clínico de atendimento sustentado pela filosofia behaviorista de B.F. Skinner. Ela tem como objetivo garantir a autonomia do sujeito diante das variáveis de controle às quais ele está submetido.

Pautada no modelo skinneriano, a TC é uma possibilidade prática para os ideais de se construir uma ciência do comportamento humano que possibilitasse melhores condições de vida, visando a um contexto social menos coercitivo e ameaçador. (Laurenti, 2009).

A TC visa à utilização de técnicas e procedimentos, como o treino, que levem a pessoa não somente a alterar alguns comportamentos-problemas, mas, e principalmente, a ter a capacidade de descobrir as contingências que os mantém. (Guilhardi apud Castanheira, 2007). Portanto, ao final de todo processo terapêutico, o terapeuta deve proporcionar ao cliente identificar, sozinho, as variáveis que controlam seu repertório comportamental para que ele possa, também sozinho, alterar sua interação com o ambiente de modo que aumente a frequência de comportamentos saudáveis.

O terapeuta comportamental deve agir de forma transparente e honesta, implica que deve ter de forma clara as noções de liberdade e controle na sua prática, além, claro, de um embasamento teórico que o permita identificar e conduzir a terapia junto com o cliente. Dessa forma, ele poderá não somente ajudar a descobrir a solução para o problema do cliente, mas também ajudá-lo a mudar de modo que ele próprio se torne capaz de descobrir. (Skinner apud Castanheira, 2007).

É precisamente quanto a este papel sobre a autonomia do sujeito que a ética da Terapia Comportamental está de acordo com a noção de liberdade skineriana, e, é exatamente nisto que repousa sua ética:

A Terapia Comportamental estará mais próxima de uma postura ética quando oferece a oportunidade de aumentar a liberdade do cliente, tornando-o assim, mais apto a lidar com seu ambiente; quando almeja aumentar seu repertório comportamental para torna-lo mais livre e dono de seu destino (quanto mais comportamentos, mais opções, mais liberdade; quando adere a uma metodologia experimental e possui métodos adequados de avaliação; quando não afeta a dignidade da condição humana, mas serve para aumenta-la enriquecendo o indivíduo e sua contribuição à sociedade. (CASTANHEIRA, 2007, p. 19)

A ética na Terapia Comportamental é considerada como autocontrole, um tipo de controle específico adquirido na história de reforçamento do sujeito dentro da comunidade. Ela se diferencia do comportamento moral, por este ter reforçadores imediatos e estar mais próximo do hábito. (Castanheira, 2007). Dessa forma, uma prática ética é algo mais amplo que regula os comportamentos morais.

A proposta skinneriana então, ganhando contornos na prática clínica, pode promover práticas sociais adequadas que levam a pensar objetivamente a possibilidade de uma sociedade mais organizada. Dessa forma, a filosofia behaviorista levada aos setores mais importantes de controle da sociedade (economia, política, etc.), como era previsto por Skinner pode não ser uma realidade total, mas ajuda o homem a poder refletir sobre suas ações e as consequências dela para si e para o ambiente.

Assim, concordando com Castanheira (2007), o behaviorismo não tem a intenção de encobrir as relações funcionais que existem no controle do comportamento humano, mas sim de poder levar o sujeito a discriminá-las, podendo assim se adaptar melhor ao ambiente. Ao contrário das perspectivas pretensamente humanistas que não possuem um critério científico rigoroso, o behaviorismo pode mostrar a realidade humana de maneira mais fiel em todos os seus aspectos, evitando assim, que as pessoas sejam meros “escravos felizes”, como trazido por Laurenti (2009).

É claro que existem grandes dificuldades no dia-a-dia da clínica, independentemente da abordagem ou modelo prático, mas se o terapeuta comportamental tiver princípios éticos, há uma grande chance de sucesso em seu trabalho. Para isto é imprescindível que ele se permita trabalhar suas próprias questões, quando necessário, além, é claro, de estar bem sustentado nas questões metodológicas do behaviorismo radical. Isto o levará a ter maior quantidade de opções, maior amplitude de ações, garantindo mais liberdade (verdadeira) ao seu cliente.

Obs.: O que a gente não faz pela aprovação na academia...

sábado, 22 de outubro de 2011

Da difícil arte da escolha.

Certamente em muitos dos meus posts este tema já apareceu. Mas como diz a anedota de Sócrates com os sofistas: difícil mesmo é dizer a mesma coisa do mesmo.
De repente isso volta e faz furo no real... Hahaha! Que nada, estamos a cada instante sendo convocados a este maravilhoso incômodo de ter que perder alguma coisa. Chorão canta: "Cada escolha uma renúncia". Nenhuma novidade.
A questão é sempre a mesma: saber-se implicado nisso. E não somente saber-se, se posicionar diante disso, como podem sugerir os psicanalistas. Independente do credo, o peso de uma decisão é sempre esse de se fazer uma aposta, pois nunca se tem certeza do efeito que terá cada atitude ou palavra.
E o tempo. O tempo que levará para que possamos nos dar conta de cada resultado produzido por cada ação que operamos. Ou não. Mas este tempo é próprio de cada um (como diz a psicanálise também), a questão é tentar lidar com isso. Como?
Viver é melhor que sonhar.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

domingo, 7 de agosto de 2011

Absurdo

Na verdade o absurdo está ali. Sempre ali. Escrever bêbado é um absurdo. Mas quem disse que estar sóbrio é menos absurdo? Absurdo. Isso chama-se existência.
O amor, a antítese, a existência, a ética, a moral, o saber, o não saber... Absurdo! É disso que eu gosto. E é absurdo! Mas não menos absurdo que qualquer opinião que porventura venha-se a se fazer aqui sobre o absurdo! Foda-se!
Absurdo.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Antítese

Quem me conhece sabe o quanto aprecio antíteses. Ironicamente, como muita coisa na minha vida, descobri que essa era a palavra certa pra isso que eu gosto mesmo! Sempre chamei de ironia ou sarcasmo, o que entra na questão também. Talvez eu goste das antíteses irônico-sarcásticas.
Certamente não se resume a isso. Eu me considero mesmo uma antítese em muita coisa. Claro, que todos somos, Kierkegaard (principalmente) e mais um monte de teóricos colocam o homem como uma contradição. O que no fim das contas a antítese é.
Porém, a antítese não é uma contradição qualquer. Creio que nela há algo de íntimo na relação com o resguardo do mistério das coisas. Quem pode percebê-las ou realizá-las pode se considerar privilegiado. Afinal é algo que se coloca num des-ocultamento de forma que permita fazer explodir a contradição em todo seu caráter mais humano e poético.
A antítese não se resume somente a um mero jogo de palavras. Dentre as figuras de linguagem, é figura de semântica, ou seja, de sentido. Ela não está restrita a uma proximidade espacial entre caracteres de significados opostos, mas sim a idéias, imagens, símbolos, etc. que se chocam e fazem brotar algo diferente, que não estava aí já simplesmente dado na relação amarrada entre significado e significante.
É preciso ir além do que se vê. Escutar o ser, intuir... Enfim, viver!

segunda-feira, 25 de julho de 2011

They tried to make me go to rehab...


Aos 27 anos de idade (emblemático por sinal), morre a cantora inglesa Amy Winehouse. Em todos os veículos de comunicação e comentários pelas ruas, as pessoas julgam a morte dela como prematura e tendem a condenar seus comportamentos e atitudes.
Como um reles apreciador de uma música ou outra dela, não me cabe aqui julgar se ela era alguém que realmente precisava de ajuda ou se ela escolheu mesmo isso. Sim! Escolheu! Afinal somos condenados a escolher, como diria Sartre. Mas me refiro aqui a uma escolha consciente, no sentido de ter sido motivada por uma vontade mesmo.
De qualquer forma, a questão da morte sempre é algo que me afeta. Especialmente mortes que suscitam julgamentos como os mencionados. Honestamente me incomoda ouvir as pessoas recriminando e se compadecendo dela como se já soubessem de antemão que sua morte lhe foi algo completamente alheio e estranho. A própria mãe dela disse que era questão de pouco tempo.
Enfim, acredito que ela viveu seus 27 anos bem melhor que muita gente que está com seus 80 e ainda se esquivando e se privando de muita coisa. A morte é algo "natural", é a totalização do projeto, no sentido heideggeriano. Não que devamos assisti-la de maneira impassível e desprovida de emoção, mas que possamos lembrar que acontecimentos como esse abrem a possibilidade de reflexão sobre o sentido de nossas próprias vidas. É justamente no ser-para-morte que abrimos mais nossa compreensão sobre nós mesmos, nossa própria existência. Os julgamentos morais praticamente irrefletidos só nos encobrem tal possibilidade.
Situações como esta não servem simplesmente para que possamos opinar na fila do pão ou no ponto de ônibus, mas devem acima de tudo nos trazer tematicamente a nossa responsabilidade sobre cada projeto de vida que construímos. A reflexão sobre o sentido da existência, que é assunto ôntico de cada um, é a mais originária e fundamental do ser humano.
A Amy já não é mais possibilidade, sua existência acabou, ela fez suas próprias escolhas, e você? Já pensou hoje sobre o que quer verdadeiramente da sua vida?

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Temporalizando...


Às vezes o maior medo que temos na vida é de estarmos perdendo tempo. Isto parece sempre ser algo tão precioso... Não é novidade certamente para ninguém que devemos esse preciosismo ao caráter finito de nossa existência. Temos vários teóricos que versam sobre esta temática e suas implicações, especialmente Martin Heidegger e Jacques Lacan.
O tempo é onde se descortina o horizonte do ser, é onde ele se realiza. Heidegger nos diz que "tempo é sempre tempo para alguma coisa", definindo precisamente o que ele chama de caráter da interpretabilidade da temporalidade. Temos com o tempo, como com os entes, também uma relação de instrumentalidade a qual podemos assumir propriamente ou não.
Freud apud Lacan nos traz a notícia de que o tempo é sempre o tempo de cada um. Ele se constitui individualmente a partir das marcas que nos são imprimidas. Ter esta compreensão é de fundamental importância para as relações, pois diz respeito à forma como cada um se posiciona diante do que constitui o desejo, a saber, a falta. Esta que nos coloca na eterna corrida pelo sentido ao redor do objeto perdido, o Das Ding.
É possível perceber então em ambos os teóricos que a questão do tempo é, acima de tudo, questão de sentido. Implica então que "perda de tempo" é "perda de tempo para alguma coisa". Esse "para alguma coisa" faz toda a diferença, pois é o sentido que cada um atribui ao que assume em sua existência, ou ao que deixa de assumir. Neste sentido, a sensação de vazio causada pela sensação de "perda de tempo" pode ser colocada como uma falta de sentido diante daquilo que colocamos como propósito ou finalidade de nossa existência.
No saber psicanalítico, a sensação de "perda de tempo" pode ser colocada no lugar do objeto de desejo como uma fuga para não assumi-lo. Ou seja, diante daquilo pelo qual temos de pagar um preço podemos resistir colocando a "perda de tempo" como explicação para algo que não queremos ter que lidar.
A ética da Psicanálise diz de um posicionamento que possibilite ao sujeito sustentar a falta, ou seja, sustentar desejo. Sendo assim, dizer que algo é "perda de tempo", deve sempre levar em consideração seu "tempo para o desejo", que se recobre de sentido, ou sintoma, que pode muito bem surgir como resistência colocando o eu em sofrimento por um não posicionamento em seu tempo enquanto sujeito. Dessa forma o trabalho analítico pode auxiliar a uma "temporalização honesta" com o sujeito.
Certamente a pobre exposição feita aqui sobre estes modos de concepção do tempo são insuficientes para uma analítica mais detalhada do fenômeno da temporalidade. Além do mais é um tema extremamente complexo e que me deixou mesmo confuso várias vezes ao longo deste pequeno texto. Todavia o fundamental talvez seja de se perceber esta relação de sentido com a finitude tão discutida neste blog. Mas por que isso de novo? Porque é mais difícil dizer o mesmo do mesmo, e também porque o sentido nunca se esgota.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Amor e egoísmo.

Seja qual for a forma de amor, será sempre egoísta. "Ohh! Blasfêmia!", muitos dirão, porém há que se ressaltar que qualquer ação humana visa um retorno. Ninguém dá nada de graça, o aparelho psíquico suporta o desprazer, através do princípio da realidade, para adiar uma satisfação que pode ser vivida como desconfortável pro ego naquele momento, mas certamente em algum momento virá a descarga e o prazer, para manter o equilíbrio pulsional de novo.
Nós construímos algumas noções como o amor, a moral e o altruísmo para que a existência em sociedade seja possível, e também para dar sentido a desejos que sentimos e precisamos fazê-los representar. No fim das contas, o narcisismo é constitutivo e nunca sai de cena.
Sejamos francos! Abaixo a hipocrisia! Mesmo o que pode parecer o mais nobre (e desesperado) ato humano de amor, o sacrifício, trará louros e glórias à pessoa sacrificada. Isto não pesa? Se ela vive, seguiu um apelo pulsional extremamente forte de se autopreservar, mas, se o infortúnio vier a lhe acometer, se livrará das dores e mazelas deste mundo, além de ter dado um sentido à morte (à vida) no último de seus instantes.
No fim das contas, a palavra pode não ser exatamente egoísmo, afinal ela parece se remeter ao "ego", mas de alguma maneira não nos perdemos de vista, não nos tiramos de nosso próprio foco, afinal, é o nosso foco que nos foca ao tentarmos não nos focar de qualquer forma. Além de que, se não queremos nos focar, não queremos olhar para nós mesmos de alguma forma...
Enfim, amor incondicional não existe, e Lord Byron morreu junto com o romantismo do mau-do-século faz um tempinho já. Não sejamos ingênuos... Mas amemos! Amemos conscientemente, amemos sabendo que por mais que façamos ao outro, estamos fazendo a nós mesmos também. Já diria aquela máxima bíblica: "Ama ao próximo como a ti mesmo". Deve ser porque amar ao próximo é amar a si mesmo também.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Do exercício do pensamento.

Pensando a trajetória do pensamento ocidental é possível ter clareza a respeito de algo que se perdeu e da distância que estamos das próprias coisas. A partir do desenvolvimento do conhecimento científico, antes mesmo, com Galileu e a retirada do conhecimento do âmbito do concreto para o âmbito da abstração, o exercício do pensamento foi ficando cada vez mais comprometido a ponto de não conseguirmos (e nem querermos) sequer pensar os fundamentos que geraram os saberes que construímos em nossas masmorras do conhecimento.
Pessoas que dedicaram a vida toda a construir um saber próprio e autêntico, que se prestaram a mostrar a necessidade de revisitar os fundamentos de tudo que se julga saber, são meramente deixadas de lado em prol de se querer simplesmente reproduzir um saber técnico pelo desespero do assombroso "Mercado de trabalho".
A importância da técnica é inegável, mas quando se cai num automatismo, coisas que o próprio Mercado de trabalho exige como flexibilidade, criatividade, idéias inovadoras, se tornam uma missão cada vez mais complexa e difícil para esses operários do saber.
Acredito que pessoas que tem um olhar diferenciado, que conseguem pensar as coisas além do que está simplesmente dado, ou seja, tentando pensá-las em todas as suas possibilidades e com uma visão crítica do mundo, tem grandes chances de adentrar o Mercado de trabalho. Pois o exercício do pensamento abre portas para um desenvolvimento necessário anterior à técnica. Pois de nada ela vale isolada de quem a utiliza. E se for um sujeito entregue às verdades prontas e ao mecanicismo da nova lógica escravocrata do pensamento, só restará a grande vedete dos nossos tempos no Brasil da era Lula: a mamata dos concursos públicos.
Sociedade imbecilizante e medíocre, abriram a porteira!
(Na imagem ao lado, um Terminal de Integração de São Luís em horário de pico)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Heidegger e a Psicanálise


Por mais que saibamos das nuances que fundam as bases teóricas de Heidegger e Lacan, é inevitável numa aproximação maior, não se dar conta da semelhança entre algumas idéias que permeiam o pensamento dos dois autores.

A arrogância dos psicanalistas e o desprezo dos filósofos podem encobrir algo que de alguma forma aparece como uma ponte entre a psicanálise e a filosofia. É bem verdade que em tempos de fragmentação e tecnização do pensamento, o objetivo daquilo que deveria ajudar as pessoas a elaborar as reflexões mais fundamentais (como a própria existência), a saber, as Ciências do Espírito, encontra-se há muito trivializado e esquecido pois elas se deixaram levar pelo automatismo da ténica. Isto faz com que cada vez mais as pessoas tendam a se fechar em suas "especialidades" e deixem de tentar pensar as coisas enquanto elas mesmas e, em nome de uma lógica engessante conceitual e categórica, não se permitam perceber relações por vezes tão claras como a idéia de um "mais além" que rege a vida humana tanto em Lacan quando em Heidegger.

Em Lacan temos a idéia do real como o que já sempre escapa, que já de alguma forma está sempre dado mas também sempre encoberto. O registro do real é como o pano de fundo onde se desenvolve qualquer possibilidade de idéia ou sentido, é aquilo que já está lá e sobre o qual se constrói qualquer imagem, significado, teoria como "sujeito", "mundo", "cultura", "moral", etc. Pode-se pensar como o "natural" que não traz significado nenhum por si só, mas de alguma forma está dado na medida em que oferece a "massa bruta" para a construção de nosso "mundo". Além deste registro temos o imaginário e o simbólico que constituem nosso sujeito. A via do imaginário encobre e reveste o real, como o nome diz, de imagem, nos possibilitando ver as coisas como coisas, o mundo como mundo. O simbólico é a linguagem. É o que determina todo o sentido e nos tira de um "estado natural". É o que nos permite assumir um lugar no mundo, uma identidade e nos dá um (o) sujeito. Numa analogia possível, considerando um quadro, o real seria o esboço sobre o qual se pinta e que escapa ao observador mas está lá como indicação através dos limites da pintura que o recobriu, o imaginário seriam os limites que constituiriam a imagem, a cobertura de tinta que lhe faz surgir e que lhe possibilita um sentido e o simbólico seria seu nome, o que lhe dá o sentido.

Os três registros se articulam com uma coisa fundamental que Lacan resgata de Freud: o das ding. Este das ding, esta "coisa" é chamado de objeto 'a' e diz justamente da falta de objeto. É algo além de qualquer capacidade de representação e nos coloca diante de uma falta que é constitutiva. O das ding é o indizível, aquilo que faz com que cada um seja único, que é completamente inconsciente e que dele só teremos notícia, sendo impossível encontrar objeto que o represente. Tem relação com a origem, com a morte, com a angústia, pois são questões para as quais nunca teremos resposta. É o que faz com que nunca tenhamos satisfação plena e mantém o sujeito desejante sempre. Este passará a vida toda, através dos registros do real, simbólico e imaginário, tentando inconscientemente encontrar algo que satisfaça isso que já desde sempre foi perdido. Ou seja, de todas as formas se tentará tamponar, cobrir, encobrir, velar, esta falta que é insuportável, mas que dá notícia de alguma forma sempre.

Pensando agora em Heidegger e sua analítica do Dasein, sua proposta essencialmente é responder à questão sobre o sentido do ser, que devido à sua obscuridade, sua aparente evidência e sua universalidade, foi deixado de lado em nome do desenvolvimento de um saber científico lógico, engessado, objetivo e fechado. Diante do aparente privilégio de um ente específico no tocante à relação com o ser, por estar em jogo com seu ser a cada instante, a saber, nós mesmos, o pensador alemão resolve tomar como horizonte liberador para o sentido do ser, uma analítica desse ente, o Dasein.

Na analítica do Dasein, Heidegger coloca como modo fundamental de ser desse ente, o ser-no-mundo. Este ente que a cada instante é no mundo tem uma relação de ocupação para com os outros entes que não possuem o caráter de Dasein, os chamados entes intramundanos (que são as coisas de modo geral). Nesta relação de ocupação com o mundo, o Dasein possui uma relação de instrumentalidade que é anterior a idéias como pensamento ou razão. Em seu modo de ser mais próprio ele já é na ocupação com as coisas, para então construir idéias sobre o mundo. A preocupação fundamental de Heidegger é com o âmbito ontológico, justamente com esse modo de ser fundamental, universal e primeiro.

Do ser já temos sempre certa compreensão, uma compreensão que será chamada de 'pré-ontológica', pois não o trazemos a cada instante como questão temática, por conta de nossa "familiaridade" para com ele desde sempre. Heidegger dirá que já temos acesso do ser em cada ente, mas que o ser não poderá ser apreendido por alguma teoria ou pensamento que interrompa seu fluxo. Isso se aplica aos entes em geral, e com o Dasein não é diferente. Heidegger dirá: "A analítica do Dasein não somente é incompleta como provisória.". Implica que apesar do acesso que temos a esse ser, ele sempre escapará a toda e qualquer definição possível. O ser sempre ultrapassará qualquer idéia construída a seu respeito.

Porém não se pode esquecer da relação que desde já temos com o ser. Como seria possível então essa relação se não podemos pensá-lo em sua plenitude? Novamente: nós já estamos em jogo com o ser a cada instante. Esta relação faz com que o ser apareça e se encubra, ou seja, a cada instante já temos uma compreensão de ser na medida em que ele nos escapa.

Da mesma forma que o das ding freudiano, o ser é um mais além. Na nossa relação de manualidade com as coisas nós precisamos racionalizá-las, teorizá-las, engessá-las, para apreendê-las. Não temos acesso consciente à relação mais imediata de ser-no-mundo-com-as-coisas. Assim como na psicanálise não temos acesso pleno ao real ou ao das ding. Heidegger está nos mostrando que temos este movimento de tentar roubar do velamento, mas que ao fazer isso, o ser se encobre, assim como a psicanálise mostra que usamos a cobertura do imaginário para lidar com a angústia da não representação de toda a falta. Na teoria heideggeriana a angústia surge como uma perda de mundo ôntico, ou seja, de todo sentido que a gente elaborou no trato com as coisas, é uma falta que surge diante da falta de sentido de uma realidade pura. Na psicanálise a angústia também surge quando temos esse acesso "descoberto" do real e da falta.

Resguardadas as diferenças teóricas, volto a dizer, com alguma serenidade é possível pensar uma aproximação entre a psicanálise e Heidegger, especialmente Lacan e Heidegger. Tal possibilidade é pouco levantada entre os teóricos das duas correntes, mas existem trabalhos de autores brasileiros que já trazem esse tipo de reflexão, como o Ernildo Stein e o Zejko Loparic.

O presente trabalho ainda carece de maior aprofundamento e dificilmente será levado adiante, pelo menos na graduação, mas a inquietação quanto à necessidade de lançar esta questão a outros gerou a motivação necessária para escrevê-lo. Perdão se tiver alguma confusão conceitual, especialmente diante da exposição dos conceitos psicanalíticos, dos quais ainda não tenho muito domínio. No mais, me esculhambem mas pensem um pouco!